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Jolie entrevista ganhadora do Prêmio Nobel da Paz

23 de novembro de 2023

Nesta quarta-feira, dia 22 de Novembro de 2023, a revista “TIME” compartilhou em seu website oficial uma entrevista exclusiva feita pela ativista e cineasta estadunidense – Angelina Jolie – com Narges Mohammadi, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz. Jolie ainda escreveu o artigo, que foi traduzido na íntegra pelo Angelina Jolie Brasil. Confira!

Escrito por Angelina Jolie
Com reportagem de Kay Armin Serjoie

A laureada com o Prêmio Nobel da Paz deste ano não poderá comparecer à cerimónia de entrega dos prêmios que acontecerá em Oslo, no dia 10 de Dezembro. Narges Mohammadi está detida na famosa prisão de Evin, em Teerã, onde cumpre a sua terceira pena de prisão por defender os direitos humanos.

Ela é uma matemática e física que adora cantar e praticar montanhismo. Ela me disse que teria tido uma vida muito diferente em qualquer outro país do mundo. Mas a situação política no Irã não lhe deu escolha, fazendo com que ela dedicasse toda a sua vida na luta pela liberdade e pela igualdade em seu país.

Mohammadi foi espancada e sofreu maus-tratos na prisão. Ela ainda sofre com problemas de saúde, incluindo os efeitos de uma recente greve de fome. Ela está impedida de falar com os filhos e até mesmo de receber fotos deles. No entanto, ainda mantém a coragem de suas convicções. “Se eu tivesse que voltar para ao ponto de partida novamente, faria as mesmas escolhas com mais determinação e vontade,” disse ela. Convencida de que viverá para ver a vitória dos direitos sobre o despotismo, ela disse: “os muros da prisão nunca ficarão no meu caminho”.

As restrições à comunicação de Narges com o mundo exterior aumentaram desde a sua vitória do prêmio Nobel. Enviei algumas perguntas através da sua família e consegui falar brevemente com ela pelo telefone, por meios indiretos, antes que a linha fosse cortada abruptamente. Aqui está um trecho das nossas conversas:

Eu sempre quis visitar o Irã e espero que um dia consiga. Quando você pensa na sua infância, há algo que lhe vem à mente – seja uma lembrança bonita ou difícil – que pudesse nos ajudar a imaginar a vida de uma família iraniana?

Nasci em uma família de classe média. No Irã, as relações familiares são fortes não apenas entre parentes próximos, mas também entre os familiares mais distantes. A família da minha mãe era politicamente ativa e empenhada. Meu avô era um comerciante conhecido no Bazar Qeysariyeh da cidade de Zanjan. O filho dele e os netos eram ativistas políticos. Educados, em sua maioria, em universidades iranianas respeitáveis, eles eram também defensores da democracia e oponentes da tirania. O grande quintal da minha avó era onde brincávamos durante nossas infâncias.

Na revolução de 1979, uma parte significativa da família da minha mãe e alguns membros da família do meu pai foram presos. Estes acontecimentos acabaram ligando diretamente o mundo da minha infância com o mundo da luta e da resistência. Eu era apenas uma criança quando fui confrontada com a execução do filho de uma das minhas tias e com a execução da filha de uma outra tia, ambos eram professores. Eu não compreendia a palavra “execução”. A palavra “tortura” foi tão abruptamente introduzida na mente do meu filho que, sem qualquer compreensão do que ela implicava, eu senti medo e ódio dela. Na década de 1980, muitas famílias vivenciaram situações semelhantes. E nenhuma dessas dificuldades e sofrimentos impediu que nossa grande família fosse feliz e trabalhadora. A perspectiva sobre nossa vida futura era muito otimista e devo isso aos ensinamentos da minha família.

Minha mãe e minhas tias gostavam de cantar, dançar e tocar dayere. Elas criaram seus filhos com amor, alegria e satisfação, colocando todo poder e habilidade nisso. Minha mãe compartilhou toda sua força, amor e carinho com seus quatro filhos. Muitas famílias tinham crenças religiosas, mas não se identificavam com o conceito de governo religioso representado pela República Islâmica. Com o tempo e, através da tirania do governo religioso, elas começaram a se distanciar disto e finalmente se opuseram ao governo.

Um exemplo: o governo religioso permitiu que os homens tivessem até quatro casamentos simultâneos e colocou o homem como o chefe das famílias. No entanto, a realidade é que os homens estavam profundamente preocupados em reconhecer abertamente até mesmo um segundo casamento, sabendo que isso criaria uma reputação muito negativa e até os estigmatizaria na sociedade, algo que seria considerado imoral e incompatível com a cultura iraniana. Mesmo a legalização da discriminação contra as mulheres não tornou isso aceitável para a sociedade.

As meninas, apoiadas pelas suas famílias, especialmente por suas mães, frequentaram faculdades e universidades e conseguiram emprego. Tanto é verdade que, quando entrei na universidade, havia mais estudantes do sexo feminino do que do sexo masculino.

Meu pai era muito gentil, tolerante e atencioso. Ele não se opôs à nossa frequência na universidade, à nossa permanência nos dormitórios ou ao aluguel de um apartamento na cidade e ainda assumiu todos os custos e despesas relacionados, que não foram poucos. Essa era uma prática comum em nossa família, entre nossos conhecidos e isso acontecia enquanto morávamos numa cidade do interior.

Lembro que minha mãe evitava usar meias pretas, muito menos vestidos pretos. Ela usava roupas alegres e coloridas. O governo religioso nos obrigou, como filhas de uma mãe que era feliz, a usar sobretudos, calças, lenços escuros e pretos. Os valores das famílias iranianas eram diferentes dos valores promovidos pelo governo.

A imagem que o governo tirânico retrata do povo e da sociedade iraniana ao resto do mundo não corresponde à cultura viva, dinâmica, tolerante e atenciosa do povo e da sociedade iraniana. A maioria da sociedade iraniana se opõe ao uso obrigatório do hijab, mas o governo mata, prende e priva as mulheres de terem um emprego e dos direitos sociais por não se conformarem com essa compulsão. A maioria dos iranianos nunca entoa “Morte à América”, mas o governo afirma falsamente que o fazem.

Você pensou, enquanto crescia, que era possível ser presa? A vida que você leva é aquela que você imaginou que teria ou você imaginava algo diferente?

Eu me formei em matemática e física no ensino médio e, na universidade, selecionei física aplicada como minha especialização. Todos os meus primos, homens e mulheres, frequentavam a universidade e minha mãe não esperava nada de nós além de estudar. Eu pretendia continuar com a física até o doutorado. Enquanto estudava na universidade, também frequentei aulas de canto. Formei o Grupo de Montanhismo Feminino (Girls’ Mountaineering Group) que até então não existia na universidade e estabelecemos uma organização estudantil independente para atividades estudantis.

Meu fascínio pela “teoria da relatividade” de Einstein e pelo “princípio da incerteza” de Heisenberg, como um dos resultados mais essenciais da mecânica quântica, era tão grande que conduzi experimentos raros em laboratórios de ótica, lasers, física e química. Quando a universidade decidiu que alguns estudantes deveriam viajar de Qazvin para Teerã com a finalidade de realizar experimentos de física nuclear em física aplicada, eu estava entre os primeiros voluntários.

A década de 1990 foi a década dos protestos estudantis, dos movimentos das mulheres e da expansão da sociedade civil. O futuro dos meus estudos académicos foi fortemente influenciado pelos tumultuosos acontecimentos políticos e sociais no Irã durante este período. A criação de instituições e organizações para estudantes e mulheres e a participação em atividades jornalísticas para ajudar a criar e formar uma sociedade civil foi de uma importância tão imensa que colocou uma responsabilidade histórica sobre os nossos ombros.

A minha paixão e responsabilidade pela criação de uma democracia não estavam apenas enraizadas nos conceitos de “sociedade civil”, “democracia” e “direitos humanos”, que eram os princípios fundamentais do nosso tempo, mas também foram alimentados pela minha experiência de vida.

Testemunhei execuções, prisões, tortura e violações dos direitos das mulheres na escola, nas ruas e na sociedade desde a minha infância. Juntamente com o meu irmão e a minha cunhada, fui repetidamente detida pelos “comités revolucionários” e pela polícia da moralidade. Os direitos humanos eram, para mim, tão necessários como respirar para permanecer viva.

Eu sempre pensei que, se tivesse nascido num país europeu ou americano e tivesse tido uma experiência de vida diferente, poderia ter sido uma física ativa numa universidade ou em um laboratório que também defenderia os direitos humanos e a paz. No entanto, a realidade é que o meu percurso de vida me levou no sentido de me tornar uma defensora dos direitos humanos na sociedade iraniana, bem como a nível mundial. Alguém que, por acaso, também estudou física e trabalhou por algum tempo como inspetora profissional de engenharia.

Quais pessoas foram as maiores influências em moldar você para se tornar a mulher extraordinária que você é hoje?

A história da minha terra é formada pelas histórias das lutas das mulheres em busca da liberdade que quebraram tradições, algo que continuou até chegar ao movimento “Mulher, Vida, Liberdade” (“Woman, Life, Freedom”) de hoje. A poesia de Forough Farrokhzad, Parvin Etesami, o papel autoritário e rebelde de Tahereh Qurrat al-Ayn, bem como os papeis de mulheres como Farrokhroo Parsa – a primeira mulher ministra e representante do parlamento – e Zhinous Nemat Mahmoudi – a fundadora do Serviço Meteorológico Iraniano – são inegáveis e altamente influentes na história contemporânea do meu país. Ainda me lembro da foto de Forough Farrokhzad fumando um cigarro no quarto do meu irmão e de seus poemas representando as facetas da cultura feminista. Ainda me lembro da admiração da minha irmã pela iconoclastia de Qamar-ol-Moluk Vaziri, por cantar a música “Morq-e sahar” entre os homens e sem véu no Grand Hotel Lalehzar. Na universidade, conheci Sediqeh Dowlatabadi, uma forte defensora da libertação das mulheres. Quando Shirin Ebadi ganhou o Prêmio Nobel da Paz, vi o seu impacto significativo no avanço da cultura dos direitos humanos na sociedade.

Minha família tinha mulheres corajosas, trabalhadoras e resilientes que foram educadas, empregadas e altamente influentes. Os membros femininos da nossa família, tanto antes como depois da revolução de 1979, esforçaram-se para obter ensino superior e fazer uma entrada significativa na sociedade. Penso que foi uma estratégia inteligente e direcionada com o objetivo de quebrar as barreiras contra as mulheres e foi bem sucedida. As mulheres no Irã estão conscientes de que nunca toleraram qualquer forma de opressão ou discriminação. A trajetória do seu ativismo surge do histórico ativismo das mulheres, cujos alguns nomes se perderam ao longo do tempo.

Eu tive o privilégio de passar um tempo ao lado de muitas mulheres nos campos de refugiados que visitei em todo o mundo. Percebi que existem semelhanças com relação àquelas que foram deslocadas pela violência ou perseguição, que perderam as suas casas e a liberdade. Geralmente fico impressionada com o destemor delas e com a maneira como conseguem rir e se expressar, sem se deixar abater pelas experiências. Como vocês se ajudam em circunstâncias tão difíceis?

No total, desde 2012, estive presa ao lado de mais de 800 colegas de cela. Ter uma prisioneira política ao lado de mulheres que foram acusadas por homicídio, roubo e tráfico de drogas pode ser bastante desafiador. Do lado de fora, até parecia impossível coexistirmos. Mas a vida, com toda a sua beleza e nuances, continuou dentro dos muros e das grades.

No dia 24 de Dezembro de 2019, após severos espancamentos, entrei na prisão de Zanjan gravemente ferida. Uma das acusações contra mim – além de protestar contra o massacre de pessoas – foi a organização de festas com dança e música na ala feminina da Prisão de Evin, durante meu encarceramento. Na prisão de Zanjan, eu usava utensílios como pandeiros improvisados, dançava e cantava com as prisioneiras. Certa vez, no meio da nossa dança, o diretor usou o sistema de som para exigir que parássemos, pois a dança era proibida. Na ala política, a realização de sessões de discussão, grupos de estudo, reuniões de protesto, declarações e participar em atos de resistência criaram um terreno comum que foi capaz de fomentar a vida comunitária. Embora diferentes orientações políticas e ideologias conflitantes possam levar à discórdia e ao conflito, nós, ao enfatizarmos os nossos pontos em comum, tornamos a vida lá mais viva. Na minha opinião, a vida e a resistência estão interligadas e, fundamentalmente, a nossa luta é pela vida. Às vezes, mulheres com ideias e inclinações diferentes tornam-se tão próximas dentro da prisão… O que me faz pensar que, se isso pudesse acontecer também na sociedade, finalmente alcançaríamos comunidades e ideais humanos.

Nós nos reunimos para celebrar os aniversários das nossas companheiras de cela e até mesmo os aniversários dos seus filhos. O som do nosso canto e a alegria chega às enfermarias masculinas, fazendo com que os diretores do sexo masculino reclamem do que acontece na ala feminina. Este é o som da nossa vibrante vida.

Me imagino na sua situação – e espero ter metade da sua coragem. Não consigo imaginar como suportaria ser separada dos meus filhos e o quanto me preocuparia com eles, provavelmente mais do que me preocuparia comigo mesma. Como você lida com isso? Você consegue falar com sua família?

Após o nascimento dos meus gêmeos, Ali e Kiana, fui detida três vezes. Na primeira vez, eles tinham 3 anos. Kiana havia passado por uma cirurgia e estava constantemente em meus braços. De repente, à noite, forças de segurança masculinas invadiram a nossa casa e fui presa.

Não consigo descrever em palavras como foi aquele momento. Kiana estava com febre e não conseguia me soltar. Suas mãozinhas, ardendo de febre, agarravam-se ao meu pescoço e eu tive que, com minhas próprias mãos, soltar seus dedinhos e confiá-la aos braços do meu marido, Taqi. Kiana chorava e gritava: “Mãe, não vá!”. No meio daqueles homens agressivos e cruéis, eu peguei o Ali, coloquei ele para dormir e o deitei na cama. Mas Kiana sabia que algo ruim estava para acontecer e não fechava os olhos. Tive que sair de casa diante de seus olhos febris. Quando desci as escadas, Kiana gritou: “Mãe, vem me dar um beijo!”. Olhei para o homem de rosto severo e ele fez um gesto para que eu fosse. Subi correndo as escadas e beijei Kiana. Minhas pernas ficaram fracas. Mais uma vez desci as escadas. Os gritos de Kiana ficaram mais altos: “Mamãe Narges, vem me dar um beijo!”. Mais uma vez subi as escadas e a beijei. Não sei como sobrevivi ao descer.

Na segunda vez, Taqi deixou o Irã. Ali e Kiana tinham 5 anos. As forças de segurança invadiram a casa da minha mãe. O terceiro e último adeus foi quando meus filhos tinham 8 anos. Eu os levei para a escola. As forças de segurança cercaram o quintal e a casa e depois fui para a prisão. Depois de dois meses, Ali e Kiana deixaram o Irã. A noite da fuga deles durou uma eternidade para mim. O dia 17 de Julho de 2015 – a partida de Ali e Kiana do Irã – é ainda mais inesquecível para mim do que o dia 28 de Novembro de 2006, o aniversário deles.

Penso que ter sido presa na frente dos meus filhos, suportar o confinamento solitário, não ver os seus rostos e não ouvir as suas vozes, foi insuportável para além de qualquer palavra, lógica ou crença. Mas durante todos estes anos, o sonho de liberdade e de igualdade para minha terra natal e a realização dos direitos humanos e da democracia na minha sociedade deram sentido a este sofrimento para mim.

De 17 de Julho de 2015 a 16 de Julho de 2016, e também de Agosto de 2019 a Agosto de 2020, fui proibida de entrar em contato com Ali e Kiana. Estou banida até hoje. Muitas vezes solicitei permissão para fazer ligações para eles, mas os pedidos foram recusados. Os sonhos são meus únicos pontos de conexão com Ali e Kiana. Mas toda vez que os vejo em meus sonhos, eles ainda têm a mesma idade e os mesmos rostos de quando tinham 8 anos, quando foram separados de mim pela última vez.

A maioria de nós não consegue imaginar ser presa pelas nossas convicções e viver em países onde esse não é um risco que enfrentaríamos. Mas sinto como se hoje houvesse mais mulheres presas em todo o mundo, do que em qualquer outro momento que me lembro, simplesmente por suas crenças na igualdade básica e nos direitos humanos. Qual é a sua impressão sobre as causas profundas e como as sociedades mudam? Você vê algum motivo para otimismo?

Eu sou uma feminista que acredita que a violência contra as mulheres é uma das formas de opressão mais prevalecentes, profundamente enraizadas e históricas. As instituições religiosas, econômicas e governamentais são mais antigas e mais poderosas do que as instituições de direitos humanos.

É inevitável que, ao examinarmos as causas da opressão contra as mulheres, encontremos a raiz dessa perseguição: nomeadamente as instituições religiosas, econômicas e governamentais, e isto prepara o terreno para uma luta difícil e severa.

A nossa luta para abolir o hijab obrigatório é uma luta contra a ditadura do estado religioso, que levou à formação de um grande e revolucionário movimento. Na minha opinião, a democracia e os direitos humanos são impossíveis sem a realização dos direitos das mulheres. É a realização dos direitos das mulheres que garante a democracia

Estou muito esperançosa quanto aos desenvolvimentos futuros no Irã, no Oriente Médio e no mundo, e esta esperança exige de mim mais ação, mais esforço e luta o que acaba me impulsionando para a frente. A esperança aumenta minha motivação para resistir e continuar lutando. Sei muito bem que a vitória não é fácil, mas é certa.

Muitos de nós ficamos maravilhados com a coragem das mulheres do Irã – e dos muitos homens que as apoiam – e também zangados e enojados ao ver a resposta violenta das autoridades. Você tem alguma palavra para suas compatriotas ou mesmo para aqueles que lhe prenderam injustamente?

As mulheres e os jovens do Irã formam as forças mais radicais, difundidas e influentes que buscam mudanças profundas e transição na sociedade. O movimento revolucionário “Mulher, Vida, Liberdade” afetou, mudou a composição e o alinhamento das forças políticas, das tendências intelectuais e até mesmo das camadas da sociedade religiosa. Agora é a hora de nos levantarmos, nos posicionarmos e resistirmos. Nós nos tornamos uma força influente e reconhecida no mundo e esta é uma oportunidade para a nossa sociedade dar um salto em direção à democracia, à liberdade, à igualdade e aos direitos humanos. Aspiramos por uma “transição pacífica do regime religioso autoritário” e continuaremos a luta até alcançarmos o objetivo do movimento: democracia e direitos humanos.

Tenho acompanhado a trágica história de Armita Geravand que, tal como Mahsa Jina Amini, morreu num encontro com a polícia da moralidade. O que você ouviu sobre o caso, se puder comentar com segurança?

A dor deste terrível incidente foi profunda e impiedosa porque o governo tentou impedir a divulgação da verdade através de informações falsas, mentiras e duplicidade. O esforço do governo para enterrar a verdade é mais aterrorizante e angustiante do que as suas ações para eliminar os seus opositores e manifestantes.

Ameaças implacáveis das forças de segurança impediram que a história de Armita fosse contada por seus colegas e por seus parceiros. Sua família, diante das câmeras estaduais, não conseguiu nem gritar de agonia para salvar a vida de sua querida filha. O governo transmitiu à sociedade a terrível mensagem de que pode matar os nossos filhos, mas nós não podemos sequer gritar a verdade e a nossa dor. A grande dor aqui é o sepultamento da verdade por um regime cujos fundamentos são construídos sobre mentiras e falsidades.

O seu Prêmio Nobel da Paz tem algum significado especial para você? Para as pessoas que estão conhecendo seu trabalho pela primeira vez, há algo que você gostaria que elas soubessem?

Nós, o povo do Irã, conseguimos transformar a nossa exigência nacional num grito de guerra que se tornou o nome do nosso movimento. Recitar “Mulher, Vida, Liberdade” no pódio do Prêmio Nobel da Paz é uma mensagem muito poderosa e significativa para o povo do Irã, mostrando que a sua voz foi ouvida pelo mundo.

A escolha de uma ativista dos direitos humanos como ganhadora do Prêmio Nobel da Paz traz autenticidade e legitimidade aos movimentos sociais e de protesto no Irã e no Oriente Médio que visam provocar mudanças fundamentais no sentido de alcançar a democracia e os direitos humanos. Também reforça a determinação e os esforços necessários para estabelecer uma sociedade civil – pré-requisito necessário da democracia. Através da minha irmã, descobri que Ali e Kiana ouviram falar da minha atribuição ao Prêmio Nobel da Paz enquanto estavam na escola.

Hoje em dia, as presas que entram me dizem que estão sendo entrevistadas e penso comigo mesma que, quando deixaram o Irã ainda não eram capazes de falar a língua farsi corretamente, mas agora estão sendo entrevistadas em razão da minha liberdade. Isso enche meu coração de emoção.

Quando soube que tinha recebido o Prêmio Nobel da Paz, o nome Mahsa-Jina Amini emergiu das profundezas do meu ser. Este movimento é adornado com seu lindo nome e dedico este prêmio a ela.

A ditadura não só aprisiona, tortura e executa pessoas, não só silencia as vozes da oposição, não só ameaça a liberdade de expressão e de crença, não só transforma as universidades em quartéis e zonas de segurança, não só restringe escritores ou censura livros e jornais. A ditadura destrói a própria vida. Aprisiona o amor no coração dos jovens, despedaça o mundo das crianças, acorrenta a felicidade e transforma sonhos em arrependimentos. Ditadura e guerra são duas faces da mesma moeda.

Somos afligidos pela governança de um governo religioso despótico e, até que façamos a transição deste estado religioso despótico para a democracia, para a liberdade e para a igualdade – que será o glorioso dia da vitória – não desistiremos. Nesse dia abraçaremos a liberdade e cantaremos o doce hino da vitória enquanto dançaremos e nos regozijaremos nas ruas e becos das nossas cidades. E nesse dia, seguraremos calorosamente as mãos daqueles que nos apoiaram em todo o mundo. Que nossas mãos permaneçam unidas, pois este apoio reforça nossa força.

• Fonte: TIME