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Jolie entrevista Abdulrazak Gurnah para a TIME

28 de setembro de 2023

Nesta quarta-feira, dia 27 de Setembro de 2023, a revista “TIME” compartilhou em seu website oficial uma entrevista exclusiva feita pela ativista e cineasta estadunidense – Angelina Jolie – com Abdulrazak Gurnah, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Jolie ainda escreveu o artigo, que foi traduzido na íntegra pelo Angelina Jolie Brasil. Confira!

Escrito por Angelina Jolie

O ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Abdulrazak Gurnah, deixou a sua terra natal – a ilha de Zanzibar – durante uma revolução e revolta que se seguiu até o fim do domínio colonial na ilha. Durante quase quarenta anos, os seus romances exploraram os efeitos do colonialismo e os efeitos do deslocamento no espírito humano. Ele falou comigo de sua casa no Reino Unido para enaltecer o relançamento de suas obras marcantes nos Estados Unidos: “O Desertor”, “Afterlives” e “By the Sea”. Ele me explicou por qual razão o movimento dos refugiados e migrantes do sul global para o norte global não pode ser separado da injustiça do colonialismo nos dias de hoje.

Angelina Jolie: É um prazer conhecê-lo. Estou muito grata por você falar comigo.

“É um prazer conhecê-la e participar disso.”

Angelina Jolie: Você passou por um ressurgimento nas descobertas – muitas pessoas redescobriram você e seus livros recentemente.

“Bem, é isso que o Prêmio Nobel faz, eu acho. Não importa o que digamos sobre os prêmios, se olharmos pelo lado positivo, de repente eles nos trazem essas pessoas cujo trabalho vem acontecendo há décadas, mas que nunca ouvimos falar.”

Angelina Jolie: E você tem ensinado e escrito durante todos esses anos?

“Sempre foi o que eu quis fazer e as duas coisas são autossustentáveis. Você não precisa ser um especialista em ensino de literatura para ser escritor. Mas acho que você acaba sendo mais bem informado sobre escrita porque é professor de literatura e, possivelmente, um professor de literatura muito bem informado porque é escritor.”

Angelina Jolie: Muito do que eu vejo em seu trabalho é sobre a conexão humana. Passei muito tempo com famílias refugiadas, tentando entender o que causa o deslocamento de pessoas, o que é perder a terra natal. Não tive que passar por isso, mas conheci muitas pessoas que passaram e sei que seu trabalho trata sobre isso.

“Não há nada de novo neste fenómeno de grandes movimentos de pessoas. A maldade, que faz parte das sociedades humanas, cria constantemente situações onde temos movimentos de pessoas que passam a procurar segurança em algum lugar. Isto é o que as pessoas fizeram, digamos, da Europa, para o resto do mundo [no passado]. No nosso mundo atual, a movimentação de pessoas é principalmente proveniente dos territórios anteriormente colonizados do mundo, colonizados por nações europeias e potências europeias. Quando as pessoas precisam, elas vão para lugares onde se tem segurança. Portanto, não é surpresa que o movimento, agora, esteja neste sentido, partindo destes locais outrora colonizados. Quando as pessoas aparecem, temos a obrigação de dizer, no mínimo, ‘Como podemos ajudá-las?’ E se não quisermos ajudá-las, podemos dizer: ‘Sinto muito, mas você vai ter que voltar.’ Mas não devemos deter as pessoas e tratá-las como se fossem criminosas.”

Angelina Jolie: Você mencionou que muitos dos lugares de onde as pessoas fogem têm uma história de colonialismo. Percebi isso enquanto eu trabalhava com a ONU – e decidi sair em determinado momento. Não seria difícil sentarmos num lugar onde há deslocamento, pobreza, conflito e pensar que, se estas pessoas tivessem tido a capacidade de negociar de forma mais justa e tivessem recebido diferentes tipos de apoio, não existiria este nível de conflito ou pobreza ou deslocamento. Este tipo de ciclo recomeça com a ajuda humanitária. É realmente muito difícil não ver [isso] e não ficar chateada com isso.

“Você está sendo muito cuidadosa ao abordar isso. Mas eu não preciso ser tão cuidadoso quanto você. O colonialismo europeu – especialmente na África – transformou tudo de cima a baixo: fronteiras, culturas, educação, nações. E, para a maioria dos países, já se passaram 50 anos e o legado de tudo isso ainda está completamente confuso. O que mais me desagrada é esse tipo de narrativa de criminalização de pessoas que estão, na verdade, tentando fazer o que você e eu teríamos feito, e o que eu fiz, e tentar encontrar um lugar melhor – um lugar mais seguro – para viver. Não creio que esta seja a forma mais humana de responder a estas questões.”

Angelina Jolie: Eu sei que você tinha 18 anos quando fugiu.

“Eu tinha 18 anos quando deixei aquele lugar. Eu não gosto da palavra fugir.”

Angelina Jolie: Como você faz essa distinção?

“Minha vida não estava em risco. Eu não corria o risco de ser preso, de ser morto, ao contrário de algumas das pessoas que vemos vindas da Síria ou do Afeganistão. Saí porque queria uma vida melhor, porque queria estudar e porque fecharam as escolas. Eu tinha 18 anos. E disse: ‘Não vou aceitar isso’. Mas não é que eu fugi. Eu queria começar uma nova vida.”

Angelina Jolie: Esse é um dos temas do seu livro “O Desertor”. Como ele surgiu?

“Eu estava pensando na ausência de histórias sobre relações ou amor entre europeus no mundo colonial – neste caso e no caso de Zanzibar – entre pessoas que viviam ao longo da costa. Teria sido impensável que as mulheres europeias tivessem uma envolvimento com uma pessoa local na nossa parte do mundo durante o século XIX. Mas com certeza, como os homens são mais livres nesse aspecto, deve ter havido relacionamentos – talvez até relacionamentos com igualdade e não apenas relacionamentos de dominação ou horríveis. Mas por que eles não escreveram sobre isso? Foi isso que me fez pensar em como poderia ter acontecido, porque eu sei que aconteceu. Você viu o filme ‘Entre Dois Amores’?”

Angelina Jolie: Sim, muitos anos atrás.

Na cena do funeral, você vê a foto de uma mulher quase toda coberta, mas você sabe que ela é uma mulher somali. Quem é ela? A resposta é: ela era sua amante. Não está no romance. Não está em ‘Out of Africa’, o livro de memórias. Isso estava no livro seguinte que Karen Blixen escreveu, uma série de cartas. Essa é uma das poucas referências que existem sobre a possibilidade de tais relacionamentos. Existiam relacionamentos sobre os quais não se falava nem se escrevia. Essa foi a primeira coisa pela qual me interessei. Um relacionamento como esse teria sido reprovado pela parte dele, pensando em um homem europeu. Também talvez tivesse sido reprovado pela nossa parte, porque parece uma espécie de prostituição: Por que você está brincando com essas pessoas que não têm nenhum respeito por nós? Haveria consequências.

E a deserção teria sido uma dessas?

Do jeito que eu estava pensando, existem múltiplas formas de deserção, como a partida do amante [no livro], porque é isso que um homem europeu provavelmente faria, ou entre os dois irmãos, o que fica claro quando um deles está para ir embora. O outro não pretende partir. Foi uma forma de explorar todas essas questões sobre consequências. Decisões sobre afiliação: Quão fiel você deve ser? Você deve ser fiel à comunidade em que nasceu? Ou você deveria procurar algo em outro lugar?

É por isso que você continua escrevendo frequentemente sobre Zanzibar?

“Não sei se estou sempre em condições de escolher sobre o que escrevo. Para muitos escritores, o cenário que você explora é provavelmente bastante limitado, baseado em sua experiência e conhecimento. Mas, em última análise, as coisas que envolvem você provavelmente não mudam muito. Encontro-me vasculhando a mesma pequena paisagem.”

Jolie também compartilhou o artigo em uma publicação recente em sua conta oficial na rede social “Instagram”. Na legenda, ela escreveu:

“Em 2005, Abdulrazak Gurnah publicou o livro “O Desertor”, um romance épico sobre como o legado do colonialismo afetou gerações de famílias africanas e britânicas em Zanzibar. Alguns anos depois, Gurnah se tornou o primeiro escritor africano, em mais de uma década, a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Por ocasião do relançamento de “O Desertor” e de duas outras obras marcantes (“Afterlives” e “By the Sea”) conversei com ele sobre por qual razão o movimento de refugiados e migrantes do sul global para o norte global não pode ser separado da injustiça do colonialismo nos dias de hoje.”

• Fonte: TIME | Instagram