Jolie entrevista ativista iraquiana Nadia Murad
16 de abril de 2022
Nesta sexta-feira, dia 15 de Abril de 2022, a revista “TIME” publicou em seu website oficial uma entrevista exclusiva da nossa musa inspiradora, Angelina Jolie, com Nadia Murad – ativista iraquiana, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 2018, e Embaixadora da Boa Vontade para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico Humano das Nações Unidas.
Escrito por Angelina Jolie
O Conselho de Segurança da ONU se reuniu esta semana, à medida que surgem relatos assustadores de que o estupro e a violência sexual estão sendo praticados contra mulheres e crianças durante a invasão russa da Ucrânia. Uma das palestrantes no evento foi a ganhadora do Prêmio Nobel e ativista, Nadia Murad, que recentemente lançou o “Código Murad”, um código de conduta global focado na coleta de informações sobre violência sexual baseada em conflitos.
Criada na antiga fé e tradições do povo Yazidi, Nadia Murad cresceu como a caçula de 11 filhos no vilarejo de Kocho, no Iraque. Ela gostava assistir aulas de história na escola, adorava brincar com maquiagem e sonhava em abrir um salão de cabeleireiro. Em vez disso, em 2014, sua cidade natal foi tomada pelo Estado Islâmico (ISIS). Quatorze membros da família de Murad, incluindo sua amada mãe, estavam entre as centenas de cidadãos que foram massacrados.
Dois de seus irmãos ficaram feridos, mas conseguiram sair das valas comuns que o ISIS cavou para suas vítimas. Murad e outras mulheres e meninas de Kocho foram sequestradas e mantidas como escravas sexuais. Ela suportou meses de cativeiro antes de escapar e encontrar refúgio na Alemanha. Desde então, ela se dedicou a garantir justiça para o povo yazidi, reconstruindo o que o ISIS destruiu e protegendo outras mulheres e crianças contra o uso do estupro como arma de guerra.
Durante a nossa recente conversa, ela me disse que a comunidade internacional precisa desenvolver um plano urgente para responder à violência sexual na Ucrânia e por que as vítimas precisam de justiça. “Eu sei que quando eu contar a minha história e começar a falar sobre estas questões, isso não vai trazer minha mãe de volta”, disse ela. “Mas eu e outros sobreviventes fazemos isso porque queremos evitar que essas coisas aconteçam com outras pessoas e porque queremos uma prestação de contas. Essa é a preocupação número um de muitos sobreviventes, quando suas histórias estão sendo contadas: eles estão esperando que a sua mensagem seja usada para fazer justiça”.
Comecei perguntando a ela quais são seus principais focos e objetivos.
É minha convicção, como sobrevivente, de que não podemos separar a responsabilidade da prevenção. Se não responsabilizarmos aqueles que cometeram esses crimes, isso vai continuar acontecendo com outras mulheres.
Eu não poderia concordar mais. A falta de responsabilidade por esses crimes realmente encoraja as pessoas a se comportarem dessa maneira e a não considerá-lo como um crime de guerra.
Pela primeira vez, a Alemanha usou a jurisdição universal para perseguir os membros do ISIS. Não entendo por que outros países membros da União Europeia, dos Estados Unidos etc. não podem seguir esse exemplo. Temos as provas, temos os testemunhos, podemos responsabilizá-los. Tudo o que precisamos é seguir nessa direção.
Está tão claro o quão importante é pegar tudo o que sabemos agora e começar implementar como um novo padrão. Com a Ucrânia, o que você espera que os governos estejam fazendo neste momento que possa ajudar na prestação de contas?
Quando o ISIS atacou na guerra contra os yazidis, por exemplo, eles tinham um plano sistemático para usar violência sexual, estupro e violar mulheres. Mas, infelizmente, quando a coalizão internacional foi formada para derrotar o ISIS, eles cometeram o erro de não considerar especificamente que a violência contra as mulheres era um elemento principal dessa guerra. A violência contra a mulher e a violência sexual nas zonas de conflito são consideradas um efeito colateral, são danos colaterais desses conflitos. Na Ucrânia, a chave é tentar fazer disso uma parte principal do plano para ajudar o povo ucraniano. Os líderes mundiais precisam entender que, seja no Iêmen, na Ucrânia ou em qualquer outro lugar, a violência contra as mulheres ocorrerá e devemos ter isso em mente ao planejar lidar com esses conflitos.
Acho que muitas pessoas não entendem por completo, quando escutam falar sobre esse tipo de violência. De alguma forma, eles ainda associam o estupro a um ato sexual ou não entendem completamente os horrores que decorrem disso. As pessoas, muitas vezes, não sabem que estamos falando do estupro de uma criança, ou do estupro que é praticado na frente de uma criança, ou do estupro que é praticado até que a mulher morra. Há evidências de que este crime é feito para destruir intencionalmente o ser humano, a família, a comunidade. Se não for pedir muito, e não for insensível, você poderia ajudar as pessoas a realmente entenderem porque é considerado uma arma de guerra?
Onze das minhas cunhadas foram capturadas pelo ISIS e levadas à escravidão. Algumas delas tinham minha idade, outras eram mais velhas e algumas delas vivenciaram essa violência na frente dos filhos, porque os filhos também foram levados para o cativeiro com elas. Os estupros foram feitos de forma visível para destruir a família, destruir a mulher, destruir a comunidade. Não foram feitos em segredo, foram feitos publicamente. Uma coisa que tenho tentado fazer em minha defesa é explicar às pessoas no Iraque com quem interajo, que os grupos terroristas, no caso do ISIS e outros, se concentram especificamente nas mulheres para destruir comunidades porque sabem que as mulheres são uma parte essencial.
Grupos terroristas usam o estupro como uma forma de destruir as mulheres porque sabem que isso pode ficar com as mulheres pelo resto da vida. Eles sabem que o estigma e a vergonha, em muitas comunidades, seguem uma mulher após a escravidão sexual e o estupro. Foi exatamente isso que o ISIS fez. Não foi um acidente. Este era um plano sistemático. O ISIS intencionalmente queria que as mulheres tivessem filhos nascidos de estupro quando os compravam e os vendiam durante a escravidão sexual. Porque eles sabiam que, para um grupo pequeno como os yazidis, seria difícil para a comunidade se recuperar. Para minha família, hoje em dia, quando vejo minhas cunhadas, depois do que elas passaram, nada é o mesmo para nós… Quando falamos, não há mais nada para conversarmos como uma família normal. Nós nos olhamos, eu sei que elas não querem falar sobre suas histórias, é claro, algumas delas nunca quiseram. Mas eu sei que quando olho em seus olhos, há muito que elas querem falar, mas não o fazem.
Para as vítimas, por exemplo, em sua comunidade de origem, existem pessoas trabalhando com as crianças, ou com essas famílias para tentar ajudá-las de forma terapêutica?
Sim, existem iniciativas e grupos que estão ajudando. Mas não há nenhum esforço coordenado para tentar encontrar uma solução, para ajudar as mulheres e crianças a não desviar o foco para outras coisas.
Muito se resume apenas aos direitos de uma mulher ou de uma criança. E, claro, quando não há responsabilização pelo crime cometido contra você, é uma grande coisa pedir à vítima que supere. É totalmente injusto, é impossível. Tenho tanta admiração por todas as mulheres como você que, de alguma forma, e com tanta graça, se mantiveram unidas e continuaram a fazer este trabalho, na ausência da justiça. Não consigo imaginar o quão difícil deve ser quando você e suas cunhadas e familiares se reúnem e se sentam com a realidade disso.
É exatamente isso. Muitas vezes, quando minhas irmãs e cunhadas falam comigo, elas dizem: ‘Por que você continua fazendo isso? Elas sabem que, depois do que aconteceu com elas, comigo e com a nossa família, ainda tem muita dificuldade em falar sobre o que aconteceu, principalmente vindo daquela região. Esse assunto acompanha vergonha, estigma, ataques e assim por diante. Mas alguém tem que dizer o que aconteceu conosco. Sei que é a coisa certa a fazer porque sei que não serei a última a enfrentar esse tipo de violência. Então é por isso que eu tenho que continuar. Eu sei que vai levar muito tempo, mas eu sei que é a coisa certa a fazer.
Eu acho que você é muito corajosa. Seu trabalho é tão significativo e você continuará salvando outras mulheres e crianças. Eu sei que você tem irmãos maravilhosos que defenderam você da mesma forma que meus filhos são assim na minha vida. Tantos homens e garotos incríveis ao redor do mundo, assim como também seu maravilhoso marido, estão lutando contra aqueles homens que cometem esses crimes.
Vou dizer algumas coisas sobre meu marido e sobre meus irmãos porque sinto que preciso. Quando contei aos meus irmãos – aqueles que sobreviveram às valas comuns – foi quando o programa “60 Minutes” queria nos entrevistar juntos. Um cara me disse que, se eu desse essa entrevista, o mundo inteiro iria me ver iria ouvir minha história. Eu tentei convencer meus irmãos e eles ficaram tipo: “Você sabe que nós te amamos. Não queremos que você enfrente estigma e vergonha.” Mas, no fim, eles me apoiaram e estão comigo durante todo este caminho, fizeram a entrevista e ficaram orgulhosos.
Depois que comecei a fazer esse trabalho, eu sabia que precisava de alguém para me apoiar, não apenas para trabalhar comigo como sobrevivente, mas para me amar, para me respeitar. Eu precisava de alguém ao meu lado para – quando me perguntam onde e quando o ISIS me estuprou – dizer que essa pergunta não deveria ser feita, de que sou humana, que sou uma sobrevivente e não mais uma vítima. Encontrei isso em Abid, meu marido. Ele me ouviu. Acho que não conseguiria nada sem ele. Espero que os homens no Iraque possam olhar para Abid e ver que ele está me apoiando, está apoiando este trabalho, que ele é tão sensibilizado pelo que acontece com essas mulheres e meninas, e não apenas yazidis. Acho que precisamos de mais homens assim, pois existem tantos homens bons no mundo que podem nos apoiar. Quando fundei a “Nadia’s Initiative”, eu só queria me concentrar em documentar o que aconteceu conosco, especialmente, as histórias das sobreviventes e o que o ISIS fez.
Eu não queria ser a única a reconstruir a região porque não era minha responsabilidade como sobrevivente. Mas depois de sobreviver e viver naquele campo de deslocados aprendi muito. Eu sabia que ser estuprada era uma coisa, mas viver em um campo de deslocados é outra experiência, especialmente para mulheres e meninas. Tudo o que estou fazendo para a “Nadia’s Initiative” veio da minha experiência, de testemunhar tudo no campo de deslocados, no cativeiro em casa, mesmo antes da chegada do ISIS. Leva tempo para fazer esses projetos, para documentar as evidências, mas mesmo com desafios, podemos usá-los para evitar que, o que aconteceu conosco, aconteça com os outros.
Quando fundei a Nadia’s Initiative, eu só queria me concentrar em documentar o que aconteceu conosco e especialmente as histórias dos sobreviventes e o que o ISIS fez. Eu não queria ser o único a reconstruir a região porque não era minha responsabilidade como sobrevivente. Mas depois de sobreviver e viver naquele campo de deslocados aprendi muito mais. Eu sabia que ser estuprada era uma coisa, mas viver em um campo de deslocados é outra experiência, especialmente para mulheres e meninas. Tudo o que estou fazendo pela Iniciativa de Nadia veio da minha experiência, de testemunhar tudo no campo de deslocados, no cativeiro em casa e mesmo antes da chegada do ISIS. Leva tempo fazer projetos para documentar as evidências, mas mesmo com desafios podemos usá-los para evitar que o que aconteceu conosco aconteça com os outros.
Fonte: TIME
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