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Angelina Jolie entrevista fotógrafo da UNHCR, Giles Duley

6 de fevereiro de 2017

Por Angelina Jolie.

Eu conheci Giles Duley no dia em que ele me apresentou para Khouloud, uma refugiada síria e mãe que se encontrava paralisada, do pescoço para baixo, depois de ser atingida por um tiro de sniper, e que vivia em uma pequena tenda em um campo de refugiados no Líbano, ao lado do seu amado marido e de seus devotos filhos. Eu sei que qualquer um que a conhecesse mudaria, completamente, o modo como vê e o que sente a respeito do povo sírio e dos refugiados. Poucas pessoas terão a oportunidade de conhecê-la pessoalmente, mas a fotografia de Giles apresentou Khouloud ao mundo.

Fotógrafos diferentes podem usar a mesma câmera, a mesma luz, ou fotografar a mesma coisa. Mas o que torna uma fotografia diferente da outra é a alma da pessoa que está atrás da câmera; os momentos que ela reconhece e é atraída – e a conexão emocional que faz. É isso o que eu amo nas fotografias de Giles. Olhando suas imagens, podemos sentir o que ele sente. Fica claro que ele se conecta profundamente com a condição humana das pessoas ao redor do mundo. Ele mesmo passou por uma provação. As pessoas dizem que a diversidade ajuda a aumentar a compaixão e a arte de Giles certamente parece expressar isso.

Uma mulher afegã, com seu bebê, sentada em choque na praia, momentos depois que seu barco desembarcou. Lesvos, Grécia. 28 de outubro de 2015. Giles Duley.

ANGELINA JOLIE: Você se descreve como um “contador de histórias” – o que está por trás da natureza e do poder das histórias que inspiram você?

GILES DULEY: As histórias tem um poder incrível. Eu, realmente, não entendo, mas elas tem um mojo, uma magia que nos ajuda a compreender o mundo e os outros. Desde o nascimento da humanidade, nós temos contado histórias uns aos outros. Nas fogueiras, através das pinturas rupestres, livros e filmes; contar histórias é fundamental para a nossa cultura e para a nossa existência. Eu sigo essa tradição. Eu não sou um jornalista – eu não foco em fatos e figuras. Eu estou interessado na nossa humanidade compartilhada, na nossa empatia pelos outros e nos detalhes da vida que nos ajudam a nos conectar.

ANGELINA JOLIE: Você conta histórias para mudar as percepções e as emoções das pessoas, mas você encontrou histórias que mudaram você também?

GILES DULEY: Minha história vive nas histórias dos outros. Este trabalho é minha vida, então, é claro que isso me afeta profundamente. Muitas das pessoas, cujas vidas eu documento, eu já conheço há anos. Elas são minhas amigas e, às vezes, eu luto para conseguir dormir sabendo onde elas estão e sentindo que não tenho feito o bastante. Mas este trabalho também me dá muita vida; as experiências e as amizades me proporcionaram risadas e lágrimas, e eu recebi muito mais do que dei.

AJ: Depois de um ano cobrindo a crise de refugiados, da Europa ao Oriente Médio, você aprendeu alguma coisa que não estava esperando?

GD: Eu fiz a cobertura dos efeitos gerados pelos conflitos nos civis, ao redor do mundo, durante uma década. O que eu não esperava era fazer a cobertura dessas histórias na Europa. Talvez seja uma coisa óbvia de se dizer, mas estar em Lesvos, conhecer afegãos, sírios e iraquianos que fugiam das guerras era algo que eu já estava acostumado, mas ao ver essas pessoas chegando às margens da Europa, percebi o quão pequeno e interconectado nosso mundo realmente é. O que mais me chocou foi a resposta da Europa dada para a crise, ou melhor, a falta dela. Foi vergonhoso.

AJ: Sua fotografia tem uma força emocional crua. Você mostra as pessoas como elas são e não como elas são rotuladas pelo mundo. Seus alvos não são as “vítimas” ou os “refugiados”, mas as pessoas, assim como nós. Por que é tão importante para você mostrar a humanidade das famílias afetadas pelos conflitos?

GD: Nunca foi algo que eu realmente considerei fazer, ou algo que eu tenha pensado sobre. Isso veio naturalmente pela maneira que eu trabalho. Eu vejo todas as pessoas da mesma forma, não me importo com status, religião ou país. Eu vejo uma humanidade compartilhada. Onde quer que eu vá, as esperanças e os sonhos das pessoas são os mesmos; ver suas famílias protegidas, seus filhos educados, seus entes queridos tratados quando estiverem doentes. De certa forma, minha câmera é completamente democrática – não julga e nem rotula ninguém, vê todas as pessoas de forma igual.

AJ: Como sua própria experiência de adversidade afetou sua criatividade?

GD: Meu acidente mudou tudo. Depois de ficar um ano no hospital, me disseram que, provavelmente, eu jamais poderia trabalhar novamente ou viver de forma independente; ninguém acreditava que eu seria capaz de voltar a trabalhar de novo. Mas eu tomei uma decisão. Eu decidi que eu nunca me concentraria nas coisas que eu não poderia fazer. Em vez disso, eu me concentraria nas coisas que eu podia fazer, transcendendo a isso. Então, é claro, que eu sou severamente limitado como fotógrafo por conta dos meus ferimentos. Eu não posso me mover rapidamente, me ajoelhar ou subir em alguma coisa pra conseguir uma visão melhor. Eu fico cansado e vivo com dor, mas eu me concentro no fato de que, apesar de tudo isso, eu ainda consigo tirar fotos e fazer o trabalho que eu amo. E, por conta dos meus ferimentos, minha empatia e a conexão com as pessoas aumentou – e isso compensa o mal. Eu posso, honestamente, dizer que desde o meu acidente, eu fiquei mais forte, mais focado e me tornei um homem e um fotógrafo melhor.

AJ: Eu sei que muitas vezes, você volta para visitar as famílias que você fotografou. O fato das coisas mudarem tão pouco, já que eles continuam instalados em campos de refugiados, ou em acampamentos informais, com uma quantidade cada vez menor de comida e de dinheiro, alguma vez, já balançou sua fé em seu propósito? O que faz com que você continue vivendo nesses momentos mais sombrios?

GD: Se você acredita em uma história, você tem que continuar contando-a. Eventualmente, alguém vai ouvir. Muitas vezes, nós da mídia somos culpados por sempre passarmos para a próxima história. Se as coisas não mudaram para uma família, ou para uma comunidade, eu acho que é meu trabalho continuar mostrando. Mas é claro que você fica pra baixo. Voltar e ver alguém vivendo nas mesmas terríveis condições, faz com que eu sinta como se tivesse falhado. A história de Khouloud foi exatamente assim. Quando eu a visitei pela primeira vez em 2014, ela estava muito vulnerável e precisando de ajuda. Então, quando eu descobri que ela ainda estava vivendo na mesma tenda improvisada de dois anos atrás, eu senti uma pontada no estomago. Eu pensei “Qual é o objetivo de contar histórias se isso não muda vidas?” E então, eu fui visitar Khouloud e sua família e eu me acabei em lágrimas quando a vi. Durante dois anos, ela não tinha saído da cama, que fica em um minúsculo quarto sem janelas. Era como se fosse uma tortura e ela ainda estava sorrindo. As primeiras palavras que eu disse a ela foram: “Eu falhei com você”.

A Cruz Vermelha Grega tratava um refugiado afegão que estava sofrendo de hipotermia. O barco tinha afundado parcialmente, deixando os sobreviventes na água por quase seis horas. Lesvos, Grécia. 29 de outubro de 2015. Giles Duley.

Um pai carrega seus dois filhos do barco após o desembarque. Lesvos, Grécia. 26 de outubro de 2015. Giles Duley.

Zahra, 54, de Abou Dhour, perto de Idlib. Giles Duley.

Ibrahim, 25, de Idlib. Giles Duley.

Hussein, 8, de Aleppo. Giles Duley.

Halima, 60, de Idlib. Giles Duley.

Lamis, 5, e Jad, 1, de Homs. Giles Duley.

Murad, 5, de Idlib. Giles Duley

Khaled, 12, e seu irmão Fadi, 7, que é cego, de Homs. Giles Duley.

Depois de certo tempo, eu pensei nas minhas próprias palavras: “Se você acredita em uma história, você tem que continuar contando-a”. Então, foi o que eu fiz. Eu tentei documentar todos os momentos da história daquela família, para fazer melhor do que tinha feito antes. Alguns meses atrás, uma organização dos Estados Unidos, chamada “Atos Aleatórios” [Random Acts] entrou em contato comigo. Eles tinham visto a história dela e queriam agir. Nós trabalhamos juntos em uma campanha para arrecadar dinheiro e, no final, pessoas de mais de 100 países tinham doado cerca de 250.000 dólares para Khouloud e para outras três famílias que estavam vivendo no Líbano. Este é o poder de uma história. É por isso que eu faço o que eu faço e continuarei contando histórias até que alguém escute. Eu não acho que a fotografia pode mudar o mundo. No entanto, eu acredito que a fotografia tem o poder de inspirar as pessoas que podem.

AJ: Por que você acha que tão pouco mudou? O que nós estamos fazendo de errado? Se você tivesse a capacidade de influenciar a política externa dos Estados Unidos e de outras nações poderosas, o que você mudaria com relação às suas políticas migratórias, sobre as crise dos refugiados?

GD: A crise dos refugiados é um problema global que precisa de uma solução global. A maioria dos políticos tem sido mais reacionária do que visionária em sua abordagem. Enquanto os líderes mundiais não trabalharem juntos e não criarem um plano a longo prazo para combater as raízes dessas causas, a crise continuará. Infelizmente, eu não consigo ver isso acontecendo e, em vez disso, estamos vendo o uso contínuo de uma retórica negativa e temerosa por parte dos políticos. Se eu pudesse fazer alguma coisa? Eu levaria todos os políticos para visitar as famílias que eu documentei. Claro que eu não posso fazer isso, então eu vou continuar a me esforçar para levar as histórias até eles.

AJ: Você falou que tem esperança de que sua fotografia possa inspirar as pessoas a agir, a fazer o que puderem para ajudar a resolver a crise dos refugiados, dando dinheiro para fazer lobby junto aos governos e ajudar suas comunidades. É um dos seus objetivos contrariar o sentimento de impotência que as pessoas possam sentir diante da implacável cobertura negativa sobre os refugiados?

GD: A crise dos refugiados pode ser esmagadora para as pessoas. Diante do enorme número e da escala, as pessoas me dizem, repetidas vezes, “Mas o que eu posso fazer?” E diante da negatividade e do ódio vistos nas redes sociais, na imprensa e nas palavras de ódio pregadas pelos políticos, o senso de desamparo cresce. Mas eu acredito que nós podemos e devemos fazer a diferença. Acredito que nós devemos olhar para trás neste momento, como um ponto de vantagem na história da nossa humanidade; nós escolhemos dar as costas para aqueles que precisam ou escolhemos abrir nossos braços? Isso serve para aqueles que sabem que é certo se levantar, ser considerado e não ser silenciado. Nós podemos apoiar organizações que ajudam refugiados diretamente, arrecadar dinheiro para organizações como a UNHCR/ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), escrever aos políticos, falar através das redes sociais quando virmos um discurso de ódio. Nós não podemos mudar o mundo sozinhos, mas isso não pode nos parar de fazer o que fazemos. Se todos nós fizermos o que pudermos, então o mundo poderá mudar.

AJ: Recentemente, você descreveu uma mulher na Finlândia, que falava sobre os esforços de sua comunidade em ajudar refugiados sírios, dizendo: “É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”. Parece que o mesmo pode ser dito sobre a sua fotografia. É uma caracterização justa?

GD: Em 2015, cem refugiados e pessoas que precisavam de abrigo, foram temporariamente alojados na pequena comunidade finlandesa de Nagu. Esta foi uma decisão que não foi muito bem recebida, e a maioria teve dúvidas. Em Nagu, eles formam uma pequena e muito unida comunidade que, durante os meses de inverno, recebe alguns visitantes. Eles tinham se preocupado com os jovens rapazes, com os ataques às mulheres e como os muçulmanos se integrariam aos seus costumes?

Um jovem afegão é cuidado por sua tia, enquanto sua mãe recebe tratamento médico de emergência. Lesvos, Grécia. 28 de outubro de 2015. Giles Duley.

Militares da Antiga República Jugoslava da Macedônia, usam fio de barbear para construir uma cerca de fronteira. Idomeni, Grécia. 29 de novembro de 2015. Giles Duley.

‘Muna’ com suas filhas. Em 2015, um míssil atingiu sua casa, matando dois de seus filhos. Ela também perdeu a perna devido a seus ferimentos. Jordânia. 27 de março de 2016. Giles Duley.

Khouloud com seu marido Jamal. Khouloud, que é de Mo’damiyat al Sham na Síria, foi baleada por um sniper em 2012. Ela ficou tetraplégica, paralisada do pescoço para baixo. Ela vive em um abrigo improvisado no Vale Bekaa com seu marido, Jamal, e seus quatro filhos. Jamal é seu cuidador em tempo integral. Giles Duley.

Aya, que tem espinha bífida, sendo empurrada em sua cadeira de rodas por seu irmão Mohamad. Trípoli, Líbano. 22 de fevereiro de 2016. Giles Duley.

Mas a comunidade tomou uma decisão – eles não tratariam essas famílias, que tinham vindo do Iraque e do Afeganistão, como refugiados. Em vez disso, eles iriam tratá-los como se fossem convidados. A recepção calorosa fez diferença, mas os benefícios não foram sentidos apenas pelos refugiados. Apesar das reservas iniciais, o povo de Nagu sente, agora, que foram os refugiados que lhes trouxeram algo. Uma mulher finlandesa, Mona Hemmer, descreveu a filosofia deles para mim. “É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”. Eu não sei se essa frase reflete o meu trabalho, mas certamente eu aspiro por isso. Nos lugares mais escuros é onde você descobre a luz. Através do meu trabalho, eu consigo ver o melhor das pessoas, eu consigo testemunhar a força de uma família e ver o amor verdadeiro. São nesses lugares que eu escolho focar meu trabalho porque neles, nós vemos humanidade e esperança. Muitos fotógrafos querem mostrar as diferenças entre nós; eu quero mostrar as semelhanças. Apesar de mostrar a realidade crua, eu espero que minhas fotos também deem esperança.

Legado de Guerra

Uma família afegã chega em Lesvos, Grécia. Outubro de 2015. Giles Duley, Legados da Guerra.

O “Legado de Guerra” é um projeto fotográfico de cinco anos que explora os efeitos, a longo prazo, dos conflitos ao redor do mundo. Mais especificamente, o “Legado de Guerra” documenta o impacto duradouro da guerra nos indivíduos e nas comunidades, através das histórias daqueles que vivem em suas consequências.

Com a mídia dominante firmemente focada nas consequências econômicas e políticas, a curto prazo, dos conflitos, o “Legado da Guerra” está preocupado com aquilo que é humano e pessoal. Ele explora as paisagens locais e a vida cotidiana daqueles que são afetados pelos conflitos – muitas vezes, décadas depois dos tratados de paz terem sido assinados – e levanta questões que muitas vezes são negligenciadas pelas notícias e pela história dominantes. Para obter mais informações visite o website oficial do projeto: legacyofwar.com

Fonte:

Humanity Magazine, Citizens Of Humanity